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Tomar refúgio

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Na primeira vez que participei de um sesshin (retiro zen), no segundo dia fui embora para casa mais cedo, naquela época durante os retiros voltávamos todos os dias para dormir em casa por que no templo não havia alojamento. No segundo dia então retornei para casa antes do final da atividade coletiva, muito chateado e com raiva com a falta de sentido daquilo tudo. Dias inteiros pré-programados, mais ou menos sete horas de meditação por dia, trabalho coletivo, ficar imóvel, não pensar, não falar... O monge responsável veio conversar comigo mas não teve jeito, precisava fugir dali urgentemente. Sentia dor no corpo, sentia dor na mente. Eu estava absolutamente incomodado e sem lugar.
 

No dia seguinte às cinco e meia da manhã eu estava lá de volta para mais um dia, seria uma semana no total. Fui ficando, ficando e permaneci até as quatro horas da manhã do último dia, quando se encerravam as atividades daquele encontro. A partir desse retiro, nunca mais perdi um retiro sequer, passei a participar de todos durante anos e anos. Notei que aquilo que me deixava incomodado e com raiva estava acontecendo apenas em mim, era como um incêndio no meu corpo apenas, mas estas chamas particulares que se manifestavam como impaciência, raiva e tédio, acabavam se extinguindo com aquela prática. Vendo que era um fenômeno só meu passei a dar menos importância a ele e assim ele se transformava em profunda paz, pelo menos até surgir uma chama ainda mais forte, mas aí já sabia o caminho e a paz voltava. Nas próximas vezes que aqueles sentimentos destrutivos surgiam, eles já eram meus conhecidos, eu dava atenção para eles. Então passei a focar na base da chama, naquilo que dava combustível. Já tinha tranquilidade suficiente e essa tranquilidade me dava clareza para identificar que tipo de pensamento, que tipo de preconceito aderido ao meu corpo era aquele que antes não conseguia ter calma suficiente para identificar. Aos poucos fui percebendo que tranquilidade e clareza eram, senão sinônimos, pelo menos estados que andavam juntos e que se fortaleciam mutuamente, dando espaço para a compaixão comigo mesmo e simultaneamente com aqueles que estavam perto de mim. Lembro de uma vez descobrir competitividade em mim, noutra vez desejos de me impor sobre os outros, vaidade, transferências, etc.
 

Todo esse processo de identificar os sentimentos destrutivos e desagradáveis e a oportunidade de ver de onde surgiam a partir do meu corpo-mente, aconteciam ao mesmo tempo, em vários níveis e sem uma ordem estabelecida. Não tinha nada a ver com racionalidade e senso de organização. Eu observava também que minha mente não era linear. Que as sensações, memórias, sentimentos e ideias surgiam randomicamente. Que muitas vezes tinham um padrão ao qual fui ficando familiar. O padrão tinha mais a ver com expectativas externas. Interno e externo foram perdendo a fronteira. Aquilo tudo era o eu que eu tinha sido até aquele momento, mas de pernas para o ar e totalmente desarticulado. E assim era mais próximo da natureza do dharma. Era 100% mutante, em constante ebulição. Não tinha nenhum compromisso com o tempo e portanto com qualquer tipo de organização determinada. E eu continuava a minha vida paralela e organizadinha, com a minha casa, família, trabalho, amigos e tudo mais. Mas o corpo não era mais o que ele havia sido até a pouco tempo. O corpo estava em fase de decomposição, claro, o que estava em decomposição era a ideia que eu tinha sobre ele. Foi quando fiquei sabendo da Grande Morte. Sinônimo de realização espiritual e extinção do eu.

Tudo isto estava acontecendo dentro da prática budista orientada pelo nosso mestre. A orientação era para todos, de forma genérica, mas eu pegava para mim, acreditava que era falado para mim. Confiava imensamente e queria colocar em prática no meu corpo. Nunca eu havia sido muito satisfeito comigo mesmo, portanto sentia que não tinha nada a perder. E havia também muita intuição de que esse era o caminho. Intuição que se alimentava do próprio caminho em constante realização e da confiança no meu mestre. Era essa fé, mistura de intuição e confiança, que me dava força, que gerava energia, que permitia realizar a transformação sem precedentes do próprio corpo. Mas naquele momento precisava quebrar as últimas resistências para seguir este curso ainda mais fundo. A imagem que eu fazia é que precisa me soltar das raízes e galhos aos quais eu me segurava e não deixava meu corpo ser levado na velocidade e no ritmo natural da correnteza. Foi quando despertou dentro de mim o seguinte: na natureza não há a qualidade de possuir e ser possuído, na verdade, propriedade e pertencimento são completamente inexistentes em qualquer parte do universo. Haveria por exemplo a gravidade que une a lua e a terra e também o sol, mas a lua não é propriedade do sol e o sol não é propriedade da terra. Qual o sentido de perguntar de quem são os galhos daquela árvore que dá sombra ali na rua? Do tronco, do sabiá? Mesmo uma pessoa quando cerca um terreno e diz ser sua propriedade, ainda o divide com dezenas de outros seres. Esse vislumbre se liberou e ficou guardado em mim como uma joia brilhante da qual poderia fazer uso sempre que precisasse. Um farol. Isso surgiu em mim por que o "mim" já começava a ceder e a permitir, a aceitar. Todas as coisas liberadas de todas as coisas. Isso era uma bússola de carne e osso e de matérias mais sutis também. O corpo liberando o corpo.

Seigen Viana
 

"Buddham saranam gacchami"
"Dhammam saranam gacchami"
"Sangham saranam gacchami"

"Tomo refúgio em Buda"
"Tomo refúgio no Dharma"
"Tomo refúgio na Sangha"

 

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